Anatomia de Uma Queda | Crítica: O incômodo é a prova irrefutável da excelência do longa

0
162
Try Apple TV

O que dizer sobre um filme francês que logo de cara começa com uma música de um rapper americano dos anos 2000 no talo? É assim que Anatomia de Uma Queda (Anatomy Of a Fall, 2023) começa. Com um puro desconforto.

E esse sentimento nos acompanha e nos segue ao longo do filme todo afinal, a roteirista e diretora Justine Triet já nos tira da nossa zona de conforto logo de cara quando vemos uma estudante (Camille Rutherford) entrevistar uma escritora alemã (Sandra Hūller) famosa em sua casa isolada no meio da neve e o diálogo é atrapalhado pelo seu marido, o francês Samuel (Samuel Theis) que bota a música no volume máximo.

Sandra Hüller em cena de Anatomia de Uma Queda.
Foto: Diamond Filmes. All Rights Reserved.

A música faz parte do processo criativo na busca dele em criar seu novo livro? É uma provocação para esposa? É uma forma dele estabelecer quem é o “homem da casa” e impedir que a entrevista da esposa, sobre o livro best-seller dela aconteça? Triet só joga perguntas para o espectador na medida que vemos a entrevista ser cancelada pela música alta.

A micro agressão é pontapé inicial, e o evento chave, para Anatomia de Uma Queda nos fazer entrar em queda livre, e cair de cabeça nessa trama que se desenrola para discutir temas dos mais complexos e que vão desde do relacionamento desse casal, questões que envolvem estereótipos sociais europeus, e até mesmo o julgamento que a escritora Sandra é ré, aqui acusada de ter matado o marido. 

Assim, Treit destrincha esses assuntos no meio dessa história sobre um crime num dos filmes mais impressionantes do ano passado. Afinal, foi ela a responsável? Ou ele só caiu? Ele pulou? Talvez esse seja o norte que Triet precise seguir para nos guiar através de Anatomia de Uma Queda, mas fica claro que não é nele que a roteirista se fixa. O longa não é um murder mystery, e sim, uma análise sobre as condições psicológicas, sociais, do ambiente que Sandra e Samuel viviam com o filho (Milo Machado Graner) depois de um grave acidente envolvendo o rapaz mudou as dinâmicas familiares.

E Treit navega por essa história brilhantemente. O incômodo que Anatomia de Uma Queda transmite é a prova irrefutável que sela a excelência do longa. Da música P.I.M.P do 50 cent a tocar repetidamente, tanto no começo, quanto depois em outras partes do filme, para a investigação que levou Samuel a cair do sótão do casarão isolado, para o julgamento (um dos melhores julgamentos dos últimos tempos no cinema) em si, Anatomia de Uma Queda cria esse mosaico elaborado para o espectador construir aos poucos a sua opinião sobre o que aconteceu.

Afinal, não é isso que fazemos quando um grande crime que ganha destaque na mídia faz? A cada pedaço de informação que temos, a narrativa é construída, independente de qual seja a verdade, onde Triet e o longa se apoiam na máxima em que temos a versão de fulano, a versão de ciclana e a verdade.

Cena de Anatomia de Uma Queda.
Foto: Diamond Filmes. All Rights Reserved.

Como falamos, Anatomia de Uma Queda fala sobre muitas coisas e não é um filme fácil de ser classificado. Não é um murder mystery, não é um longa de julgamento, não é um longa sobre a relação complexa entre esse casal. É mais do que isso, e ao mesmo tempo é tudo isso, envelopado numa produção caprichada, numa atuação fenomenal de Hüller.

A atriz carrega o longa com uma frieza, e ao mesmo tempo demonstra emoções rápidas mas extremamente humanas quando ela parece querer mais se reconectar com o filho do que se salvar no tribunal. Sem um álibi para conseguir se defender propriamente dito das acusações, afinal, só estavam ela e o marido na casa na hora do crime, a atuação de Hüller, e a precisa direção de Triet, nos fazem cair nesse sentimento de ambiguidade que a trama, e a história, se apresentam.

E que dão trabalho para o advogado de acusação (Antoine Reinartz, ótimo) em conseguir provar alguma coisa. E olha que ele tenta, intimida e apresenta seu caso muito bem. O que faz Anatomia de Uma Queda engrenar mesmo, e nos deixar realmente envolvidos como essa história. São nas partes do tribunal que nos garantem ótimos momentos na medida que os monólogos de acusação e de defesa, liderados pelo advogado (Swann Arlaud), são dados.

A trama escalona em tensão, testemunhas são ouvidas, Sandra é colocada para dar seu depoimento, Daniel é colocado para dar seu depoimento, pistas são apresentadas e nos levam para boas reviravoltas, uma mensagem de voz que nos leva para um flashback importante, um cachorro no meio de tudo, e tudo isso é apresentado, para o espectador tirar suas conclusões. 

Sinto que Triet entrega tudo de uma forma crua e sem pender para nenhum lado, apenas o que temos em cada uma dessas pistas são fragmentos de uma verdade, onde ela nos apresenta de uma forma plana e sem muito opinativa, o que apenas beneficia o longa e a experiência do espectador.

No final, Anatomia de Uma Queda cai numa zona cinzenta, numa história cinzenta, com personagens cinzentos e apenas entrega excelentes atuações em um filme merecedor de todos os prêmios que recebeu até agora. Nenhum personagem é 100% confiável e nos deixa à mercê de ouvirmos o que eles tem para falar, vai de você querer cair no papo e em quem você acredita nessa provocativa, tensa e viciante história. Mas, cá entre nós, foi ela né?

Nota:

Anatomia de Uma Queda está em cartaz nos cinemas.

Try Apple TV

Deixe uma resposta