The Handmaid’s Tale | 1×04 – Nolite Te Bastardes Carborundorum

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A dessensibilização acontece quando o contato direto com algo danoso é tão intenso e constante que, com o passar do tempo, nos tornamos insensíveis aos seus estímulos. É assim que me senti ao assistir o quarto episódio de The Handmaid’s Tale. Foi um incrível episódio que inicialmente me decepcionou, pensando que a qualidade havia caído. Apenas quando parei para repensá-lo foi que percebi como estava errado. Vem comigo recobrar os sentidos em Nolite Te Bastardes Carborundorum! Praise be! (Louvado seja!)

ALERTA DE SPOILER: Este artigo contém informações sobre os principais acontecimentos do episódio. Continue a ler por sua conta e risco.

O cárcere privado de Offred já dura duas semanas e ela sente sua sanidade se esvaindo aos poucos. Manter uma pessoa privada de contato externo por longos períodos de tempo é uma das técnicas de tortura proibidas pelo Tratado de Viena, por ser cruel demais. Mas Serena Joy precisa ser desumana, pois é a única forma de se validar nessa nova sociedade. Sua condição de Esposa não lhe traz muitas tarefas. Além de cuidar dos filhos – que ela ainda não tem – é virtualmente sem função útil. Deixemos Serena Joy para mais adiante e vamos focar na inscrição que Offred encontra no armário de seu quarto.

Com a proibição de leitura para mulheres, realizar aquela gravação foi um ato de extrema braveza da Offred anterior, de quem ainda não temos maiores informações. Vemos como a proibição da leitura é tão forte ao notarmos que Fred se preocupa em ocultar a página de noticias que lê para que Serena Joy não possa vê-la, mas mesmo assim lhe conta, através de sua ótica, as notícias do mundo. Por um instante eu pensei que Offred seria burra o suficiente para perguntar se Rita sabia sobre a inscrição, mas, felizmente, ela soube manter o trunfo para si própria. Rita é outra personagem que me intriga, não sei se ela se sente aliviada por ser apenas uma Martha ou se realmente é adepta dos Gilead. Bom, o que importa é que seu susto garantiu uma visita ao médico para Offred.

Que homem nojento! Em nossa sociedade, ele se consideraria um “homem de bem™”, incompreendido por mulheres que não sabem apreciar suas gentilezas. Nojo! Offred foi muito inteligente em não aceitar sua oferta por vários motivos. Se fosse pega, seria condenada por fornicação. Também achei interessante notar que na sala de espera temos apenas Handmaids, mas nos retratos, são as Esposas quem posam com os bebês. É um detalhe, mas um lembrete de que elas não passam de órgãos portáteis, facilmente substituíveis.

Mas eu gostei da visita ao médico por outro motivo. Finalmente alguém falou que as mulheres não estão engravidando pelos homens também estarem estéreis. É uma conclusão lógica, afinal, a biologia humana não escolheria apenas um gênero para afetar, mas, em uma sociedade patriarcal e machista, dizer que o homem não é capaz de gerar filhos é ferir com a frágil masculinidade do macho. Essa informação foi brevemente tocada aqui, mas será muito importante no decorrer da série.

Nas cenas de flashback sabemos como June e Moira se separam. Após a terrível lição sobre a Cerimonia de estupro, as amigas decidem que não podem mais suportar aquele terror e armam um plano de fuga. Pensei que, ao poupar a Tia de sofrimento, teríamos algum tipo de alívio futuro, ledo engado. Também achei que a fuga foi muito fácil. Mesmo com toda aquela segurança, bastou uma simples carteirada sem nenhuma verificação de foto para liberarem a saída? Meio furado isso. Parece que só se lembraram de verificar a situação delas quando June ficou sozinha, o que também me pareceu estranho, pois pensei que Moira corria mais risco por dirigir a palavra a um homem. Ótima a atitude de June, que deu permissão para a amiga seguir com a fuga enquanto era capturada em seu lugar. Porém, se os Anjos forem minimamente espertos, estarão na próxima estação, fortemente armados, apenas aguardando para receber Moira.

Gostaria de me aprofundar um pouco sobre quando June e Moira presenciam, pela primeira fez, a real dimensão da situação atual do país. Corpos pendurados aos montes expostos ao público. Restos de material de protestos e documentos (livros?) queimados. Homens (em sua maioria brancos) de negócios andando em meio aos mortos como se nada de diferente houvesse acontecido. É uma cena de barbárie e precisamos nos focar nesse sentimento, pois, com a exposição em excesso, parece que se torna normal e nos acostumamos, deixa de ser a exceção e passa a ser a regra.

A Cerimônia do mês não é realizada, pois Fred não consegue ereção suficiente. Tenho duas teorias aqui: ele ficou muito nervoso pelo longo período afastado de Offred e pela sensação de perigo por ter quebrado o protocolo da Cerimônia ao entrar na sala antes dos outros para se comunicar com ela; ou fez de propósito para conquistar a confiança de Offred durante a visita noturna em sua biblioteca. Em ambos cenários, quem se sentiu humilhada foi Serena Joy que, mais uma vez, se viu rejeitada pelo marido. É provável que, na República de Gilead, qualquer tipo de sexo sem fim reprodutivo é considerado pecado. Nesse caso, sexo com uma infértil jamais seria permitido. Será que é por isso que Serena Joy sente essa necessidade quase psicótica de infringir sua superioridade em Offred?

A insistência em querer que Offred o visite em sua biblioteca e que sua vida seja um pouco mais “tolerável” não me convence muito, mas me confunde, pois não compreendo quais são suas intensões. Talvez Fred apenas pratique a Cerimônia pois sabe que é seu dever como Comandante de Gilead. A tradução de frase em latim é uma dica interessante de como deve ter sido seu passado: o que deve ter levado o jovem Fred a pensar na frase “não deixe os bastardos lhe triturar“? Será que ele não é tão a favor da República quanto parece? Teremos aqui um traidor em potencial?

Será que teremos um episódio onde testemunharemos o que aconteceu com a Offred anterior? Gostaria muito de saber exatamente o que Serena Joy fez para que ela sentisse que a morte era a única saída. E talvez seja por isso que sua relação com Fred está praticamente destruída.

Offred nos deixa com a impressão de que está sempre perdida ou desamparada. Sim, sua situação não é muito esperançosa, mas sentia falta dessa demonstração de manipulação feminina que os governantes de Gilead tanto temem. Sua estratégia para se libertar do cativeiro foi elaborada no calor do momento, mas com exímia precisão, sem deixar espaço para recusa de Fred, que parece apenas atender ao desejo emocional de uma Handmaid, não às tramoias de uma feminista lutando pela sua liberdade. E é bom notarmos o contraste entre Offred e Serena Joy: enquanto a Handmaid está finalmente sob o sol, a Esposa, que teoricamente tem uma posição social melhor, ainda está presa ao seu cativeiro matrimonial e residencial.

A trilha sonora dá ao término do episódio um clima ameno e esperançoso, o que imagino que tenha contribuído à impressão de que foi mais leve que os anteriores, mas é, provavelmente uma jogada para nos desarmarmos. Minha previsão é de que os próximos episódios sejam cada vez mais calmos, para que o ritmo aumente vertiginosamente ao final da temporada. Inclusive, notem que, durante os créditos, começa a chover, seria um prenúncio de tempestade a vista?

O EVANGELHO DE GILEAD:

  • De acordo com Fred Waterford, a República de Gilead está sofrendo embargos comerciais devido violações de direitos humanos. Sua análise é de que o Euro entrará em colapso caso o embargo se prolongue por muito tempo, o que leva a crer que as negociações com países asiáticos, africanos e latino-americanos ainda estão em andamento. Essa compreensão é corroborada pela informação de que Fred acaba de retornar de uma delegação de comércio que estava no México.
  • Uma Tia escapa de um Centro Vermelho para o Canadá e dá uma entrevista sobre o programa das Handmaids para o jornal Toronto Star. Isso mostra que nem mesmo quem ocupa posições altas é a favor do regime e participa de livre e espontânea vontade da República de Gilead.
  • Todas as placas e sinais de trânsito foram retirados das ruas para que as mulheres não tivessem acesso a material de leitura algum.

The Handmaid’s Tale é exibida no Brasil pelo Paramount Channel aos domingos às 21:00, com reprise às segundas às 23:30 e aos sábados às 22:00, 23:00 e 00:00. Praise be!

Texto originalmente publicado no Apaixonados por Séries.

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